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A Alteração Retroativa do Regime de Bens para um Modelo Menos Abrangente: A Primeira Sentença com Eficácia Ex Tunc no Brasil
Artur Capano
Advogado (OAB/SP 380.786), especialista em Direito de Família e Sucessões.
1. Introdução
O Direito de Família, por sua essência dinâmica, deve acompanhar as transformações sociais e respeitar a autonomia privada dos cônjuges, especialmente em questões patrimoniais. A possibilidade de alteração do regime de bens no casamento, prevista no artigo 1.639, §2º, do Código Civil, tem ganhado relevância, mas enfrenta resistências doutrinárias e jurisprudenciais, sobretudo quando se busca eficácia retroativa (ex tunc).
A sentença proferida em 26 de agosto de 2024, pela 4ª Vara de Família da Comarca de Vitória/ES, marcada pela tese de minha autoria (Artur Capano) e sentença da juíza Aline Moreira Souza Tinoco, marcou um precedente histórico ao autorizar, pela primeira vez no Brasil, a alteração retroativa do regime de bens de comunhão parcial para separação total, com efeitos desde a data do casamento.
Este artigo analisa os fundamentos jurídicos, principiológicos e as implicações práticas dessa decisão pioneira, destacando os argumentos apresentados na petição inicial que embasaram a tese vencedora.
2. Contexto Legal e Jurisprudencial
O artigo 1.639, §2º[1], do Código Civil estabelece que a alteração do regime de bens é possível mediante autorização judicial, com pedido motivado de ambos os cônjuges e ressalva dos direitos de terceiros. O artigo 734[2] do Código de Processo Civil reforça essa exigência, destacando a necessidade de motivação e proteção contra prejuízos a terceiros.
Contudo, a doutrina e a jurisprudência tradicionalmente limitaram a retroatividade dessa alteração, especialmente quando o novo regime fosse menos abrangente, sob o argumento de que a redução do patrimônio comunicável poderia lesar credores ou terceiros que confiaram no regime anterior.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial nº 1.671.422[3], já havia admitido a retroatividade (ex tunc) na alteração de regimes mais restritivos para mais inclusivos, como da separação total para a comunhão universal, por entender que a ampliação do patrimônio comunicável favoreceria credores. No entanto, até a sentença de Vitória/ES, não havia precedentes reconhecendo a retroatividade em mudanças para regimes menos abrangentes, devido ao receio de prejuízo a terceiros.
3. A Sentença Inédita
No caso concreto, os cônjuges, casados em 6 de setembro de 2022 sob o regime de comunhão parcial, requereram consensualmente a alteração para a separação total de bens. A petição inicial, elaborada com a tese de minha autoria, argumentou que o novo regime melhor refletia a realidade atual do casal, considerando seus valores, objetivos e estruturas profissionais como servidores públicos federais, sem causar prejuízo a qualquer cônjuge ou terceiros.
O pedido foi acompanhado de um pacto pós-nupcial, com ampla publicidade processual por meio de editais, e não enfrentou oposição de interessados. O Ministério Público manifestou-se favoravelmente.
A juíza Aline Moreira Souza Tinoco, em decisão fundamentada na tese apresentada, reconheceu que todos os requisitos legais estavam cumpridos: consensualidade, motivação adequada e ausência de lesão a terceiros. Assim, atribuiu eficácia ex tunc à alteração, determinando que a separação total de bens retroagisse à data do casamento, com posterior averbação em cartório.
Trata-se da primeira decisão no Brasil a admitir a retroatividade em um regime menos abrangente, superando a resistência jurisprudencial até então predominante.
4. Fundamentos Jurídicos e Principiológicos
A decisão se ancora em uma interpretação progressista dos artigos 1.639, §2º, do Código Civil e 734 do CPC, conforme sustentado na petição inicial. A ressalva dos "direitos de terceiros" não implica uma vedação absoluta à retroatividade, mas sim a necessidade de garantir que a alteração não cause prejuízo concreto e comprovado.
A análise do pedido deve se concentrar na ausência de lesão, e não na natureza do regime adotado, destacando que, na maioria das transações civis, o estado civil dos cônjuges não é fator determinante para a segurança jurídica, exceto em casos específicos onde terceiros confiaram no regime anterior para garantir créditos.
A sentença acolheu essa tese, enfatizando que a autonomia privada dos cônjuges, como expressão da liberdade e da dignidade da pessoa humana, deve ser respeitada, especialmente em pedidos consensuais e transparentes.
A petição também invocou a proteção contra a violência patrimonial, prevista no artigo 7º, IV[4], da Lei Maria da Penha, argumentando que a vedação genérica à retroatividade pode perpetuar desequilíbrios patrimoniais, como em situações em que um dos cônjuges, inicialmente confiante, posteriormente percebe que o regime de comunhão parcial o expõe a dívidas ou atos ilícitos do parceiro.
A ampla publicidade processual, por meio de editais, foi destacada como garantia de proteção a terceiros, que podem buscar tutela judicial caso se sintam lesados. A decisão, portanto, alinha-se aos princípios constitucionais da dignidade, liberdade, isonomia conjugal e proteção à família, reforçando a legitimidade da vontade consensual dos cônjuges.
5. Implicações Práticas e Jurídicas
A sentença de Vitória/ES, inaugura uma hermenêutica mais flexível e funcional, com impactos significativos no Direito de Família.
A petição inicial destacou que a possibilidade de alteração retroativa para um regime menos abrangente permite corrigir desequilíbrios patrimoniais com maior justiça, especialmente em relações de longa duração ou em casos de deterioração da confiança entre os cônjuges.
A petição inicial apresentou exemplos hipotéticos, como o de uma esposa que, após décadas de casamento em separação total, enfrenta o divórcio sem acesso ao patrimônio acumulado em nome do marido, apesar de sua dedicação à família, ou o de um cônjuge que, sob comunhão parcial, percebe o risco de ser prejudicado por dívidas do parceiro, justificando a necessidade de retroatividade para proteger seus direitos.
A decisão oferece segurança jurídica aos casais que desejam reorganizar sua vida patrimonial com liberdade, desde que respeitados os requisitos legais de consensualidade, motivação e ausência de prejuízo a terceiros.
A retroatividade, conforme defendido na petição, contribui para prevenir a violência patrimonial ao permitir ajustes que reflitam a realidade atual do casal, evitando abusos decorrentes de rigidez formal. A sentença também estimula acordos patrimoniais preventivos, reforçando a autonomia privada.
A proteção a terceiros é mantida, já que eventuais credores podem questionar a eficácia da alteração em casos concretos, garantindo equilíbrio entre a liberdade dos cônjuges e a segurança jurídica.
6. Relevância Doutrinária e Jurisprudencial
A sentença da 4ª Vara de Família de Vitória/ES, embasada na tese de minha autoria, representa um marco na evolução do Direito de Família brasileiro, ao romper com o formalismo que limitava a retroatividade a regimes mais inclusivos.
A petição inicial argumentou que a vedação genérica à retroatividade contraria o sistema jurídico, especialmente os princípios do Direito de Família e a proteção contra a violência patrimonial, que pode ocorrer de forma sutil e ser difícil de provar.
A tese sustentou que prevenir tais abusos, por meio da alteração retroativa, é mais eficaz do que depender de medidas repressivas, como destacado pela metáfora utilizada petição inicial: “Para quem se incomoda com determinado rio, não é necessário trabalho para desviá-lo, mas sim, interromper a sua nascente. É mais eficiente e eficaz interromper a nascente, ou seja, agir na origem do problema, do que esperar que ele se desenvolva”.
Ao priorizar a ausência de lesão concreta em vez da natureza classificatória do regime, a decisão reforça a necessidade de o Judiciário adotar uma postura sensível às realidades afetivas, evitando que rigidezes formais perpetuem injustiças patrimoniais.
Embora a inovação exija maturação jurisprudencial e debate doutrinário, o precedente estabelecido pode orientar futuros julgados, consolidando um Direito de Família mais equitativo e adaptado às demandas contemporâneas.
A decisão também destaca o papel do Judiciário em promover a justiça material, reconhecendo que a autonomia privada dos cônjuges deve prevalecer quando exercida com transparência, consenso e respeito à boa-fé.
7. Conclusão
A sentença da 4ª Vara de Família de Vitória/ES, é um divisor de águas na interpretação do artigo 1.639, §2º, do Código Civil.
Ao admitir a alteração retroativa do regime de bens para um modelo menos abrangente, com eficácia ex tunc, o Judiciário brasileiro reconhece a primazia da autonomia privada e da justiça material.
A petição inicial destacou que a retroatividade, ressalvados os direitos de terceiros, é essencial para proteger os cônjuges de desequilíbrios patrimoniais e prevenir a violência patrimonial, alinhando-se aos princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade.
A decisão garante a segurança jurídica de terceiros por meio de publicidade processual e tutela judicial acessível. Com essa inovação, o Brasil dá um passo significativo rumo a um Direito de Família mais funcional, sensível às dinâmicas afetivas e comprometido com a justiça.
A tese, agora inaugurada, promete estimular reflexões e consolidar uma prática jurídica mais justa e alinhada às necessidades dos casais.
Processo nº 5016292-98.2023.8.08.0024
[1] Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
§ 1 o O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento.
§ 2 o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
[2] Art. 734. A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros.
§ 1º Ao receber a petição inicial, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida alteração de bens, somente podendo decidir depois de decorrido o prazo de 30 (trinta) dias da publicação do edital.
§ 2º Os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros.
§ 3º Após o trânsito em julgado da sentença, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis e, caso qualquer dos cônjuges seja empresário, ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.
[3] RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO. ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS DE SEPARAÇÃO TOTAL PARA COMUNHÃO UNIVERSAL. RETROAÇÃO À DATA DO MATRIMÔNIO. EFICÁCIA "EX TUNC". MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DE VONTADE DAS PARTES. COROLÁRIO LÓGICO DO NOVO REGIME. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, "é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros".
2. A eficácia ordinária da modificação de regime de bens é "ex nunc", valendo apenas para o futuro, permitindo-se a eficácia retroativa ("ex tunc"), a pedido dos interessados, se o novo regime adotado amplia as garantias patrimoniais, consolidando, ainda mais, a sociedade conjugal.
3. A retroatividade será corolário lógico do ato se o novo regime for o da comunhão universal, pois a comunicação de todos os bens dos cônjuges, presentes e futuros, é pressuposto da universalidade da comunhão, conforme determina o art. 1.667 do Código Civil de 2002.
4. A própria lei já ressalva os direitos de terceiros que eventualmente se considerem prejudicados, de modo que a modificação do regime de bens será considerada ineficaz em relação a eles (art.
1.639, § 2º, parte final).
5. Recurso especial provido, para que a alteração do regime de bens de separação total para comunhão universal tenha efeitos desde a data da celebração do matrimônio ("ex tunc").
(REsp n. 1.671.422/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 30/5/2023.)
[4] Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
[...]
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
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